segunda-feira, 10 de março de 2014

Identidade individual e identidade de grupo









    A identidade pessoal, isto é, quando é que algo é ainda o mesmo algo ou algo diferente ou a questão da persistência da mesmidade, é um dos mais antigos e complexos problemas da filosofia, pelo que seria presuntuoso apresentar aqui uma solução para a poder equacionar com a identidade de um grupo. Pelo que faço uma variante do assunto e falarei antes de identidade individual 1, a qual podemos ainda não saber caracterizar mas sabemos bem a partir de que limites a identidade individual é claramente comprometida e o objectivo deste texto é exactamente esse, o de conhecer quando é que os limites da identidade de um individuo é comprometido pela de um grupo ao qual voluntariamente pertença2.



    Existimos primeira e necessariamente como seres independentes, como Sartre constatou, condenados à nossa própria liberdade, uma consequência da nossa mente individual que cuja percepção da própria existência obriga a uma opinião do que percepciona, liberdade esta que por vezes nos impõe escolhas injustas, como escolher entre o nosso mal ou à expressão livre e exterior da nossa liberdade. Mas, existindo, a nossa mente opina e avalia na melhor das suas capacidades tudo o que com ela entra em contacto e por fim escolhe, mesmo que essa escolha seja dar a acção a outrem, a nossa representatividade a alguém que não somos nós, ou pura e simplesmente nunca se exprimir e escolher que outros influenciem o mundo, incluído o mundo pessoal do próprio individuo, de uma forma desafecta à opinião deste. A identidade individual é então algo que o próprio individuo (e apenas este ?) conhece, e esta é começa a ser ultrapassada quando o individuo a sente forçada a fazer acções não porque as escolheu mas sim porque a escolha foi feita independentemente da sua opinião, pois nesse momento o individuo consegue ver duas coisas, as acções implicadas pela sua identidade e a acções que lhe estão a ser forçadas e que não são compatíveis com a sua identidade.


    Mas a maioria dos indivíduos nasce já numa sociedade, ou seja numa espécie de união ou grupo do qual se pode questionar se podem ou não ter completa liberdade e identidade individual, mas admitamos que sim (posteriormente espero vir a argumentar, implicitamente, tal coisa, mas de qualquer forma é irrelevante para o problema aqui levantado). No entanto dentro dessa sociedade muitas vezes cada um dos indivíduos escolhe livremente juntar-se ou fazer parte de um outro grupo ou a uma outra forma de união3 que obrigatoriamente até certo ponto ultrapassa ou suplanta o individuo possuindo uma identidade própria que dificilmente será completamente indiferenciavel da do individuo4. A questão passa por saber quando é que está identidade do grupo é um ataque à identidade individual e pessoal.

    Pensemos na identidade de grupo, esta é feita pois várias pessoas livres, se unem para realizar acções concretas, sob a forma de uma entidade que pode ser caracterizada de forma independente, mas sem necessariamente se confundir com a dos seus indivíduos atómicos (ou seja as pessoas). A identidade deste grupo surge da mistura da identidade dos seus integrantes, mesmo no caso de um grupo completamente autoritário e hierarquicamente rígido a sua caracterização só pode-se realizar através dos que representam a autoridade e dos que escolhem serem comandados por essa mesma autoridade, um grupo destes surge quando existe um numero suficientemente grande de pessoas dispostas a serem comandadas e de outras a comandarem5. Mas o mesmo é valido para grupos de, digamos, discussão de opiniões livres, onde para funcionar como grupo os indivíduos tem de aceitar regras ou procedimentos que podem não ser de pleno acordo com a própria opinião (por exemplo os temas sobre os quais falar, durante quanto tempo, forma de reunião etc...), mas claramente alguns tipos de grupo forçaram mais do que outros a uma maior pressão sobre a identidade do individuo em relação à identidade do grupo. Se esta nova entidade se gera a partir da mistura de individualidades, a proporção da escolha de liberdade expressa ou externa de cada um dos indivíduos será aquilo que enforma a identidade desta nova entidade que é o grupo, assim o individuo tem através da sua escolha um efeito modelador proporcional à força da exteriorização da própria identidade. A capacidade de exteriorizar a escolha e opinião pessoal que é um reflexo da identidade pessoal, não será o único factor pois os mesmo é valido para cada um dos indivíduos, levando a um confronto ou uma confluência de características individuais, é será deste encontro que emergirá uma nova entidade com a identidade própria do grupo. Teoricamente nada impede que vários indivíduos diferentes consigam criar um grupo em que apenas há confluência na identidade dos indivíduos (para os propósitos do grupo, entenda-se, pois de outra forma podíamos começar a por em causa se seriam de facto indivíduos diferentes) mas o caso que nos interessa é aquele em que existe também conflito de opiniões individuais, expressas ou não.


    O individuo ao entrar num grupo sabe da provável impossibilidade de total compatibilidade para com a maioria pelo que já está a pressupor que nem sempre poderá agir da forma que escolheria em todos os casos, ou que os seus “representantes“ nem sempre o representarão mas sim coisas com as quais não está de acordo6. Chegamos ao crucial, qual é a relação da identidade individual e da lealdade para consigo próprio quando isso acontece?
O individuo unindo-se ou criando voluntariamente um grupo terá uma noção dos parâmetros desse mesmo grupo, pelo que tendo consciência de que parte da sua liberdade é posta em causa para a formação da identidade do grupo, terá já uma noção do que está abdicar e mesmo assim faz a escolha plena, resolvendo pessoalmente quais são os limites a partir dos quais não abdica ou abdica de algumas opções pois estão ainda são compatíveis com a sua identidade. Desta forma as escolhas do grupo podem passar por escolhas também pessoais e compatíveis com a sua identidade, pois foram tomadas antes de o grupo poder exercer influencia sobre o individuo, provavelmente sendo opções que possivelmente também tomaria sozinho dadas as circunstancias certas, assim é necessário ir ao nível seguinte e ver quando a opção do grupo é uma incógnita ao individuo.


    A opção de um grupo é muitas vezes uma incógnita, mesmo aos seus integrantes, pelas mais variadas razões, desde a impossibilidade de prever e calcular todas as variáveis, ou à de mutação do próprio grupo, quer através da mudança individual de cada um dos integrantes ou de mudanças daqueles que são os integrantes do grupo. E é esta incógnita que tem a capacidade de afectar o individuo, pois ao ser confrontado com a novidade o individuo terá de avaliar essa mesma novidade e neste momento rever a sua própria identidade. Neste momento duas coisas podem acontecer, estar de acordo com a resolução (ou dentro dos limites que tinha definido previamente) ou não estar de acordo. O conflito gera-se neste ultimo ponto, potencialmente comum, em que o grupo implica algo que já não é o acto do individuo, que pode escolher três coisas: agir de forma contraria ao grupo mas própria a si próprio, aceitar sem concordar mantendo a mesma opinião que tinha mas agindo contra a própria a opinião, ou por ultimo (tentar?) mudar-se a si próprio. No primeiro caso creio existir pelo menos uma certa preservação da identidade pessoal7, no terceiro claramente existe a auto-violação desta, e no segundo? 

    É evidente que existirá um conflito pessoal pois tem uma opinião e uma acção diferente, aqui encontramos outra pergunta, o que caracteriza uma pessoa? As suas opiniões ou as suas acções? Podemos supor um sujeito na situação em que pensa A mas executa não A (o seu oposto), e outro que pensa e executa não A, nesta caracterização redutora os dois são do ponto de vista de um observador externo idênticos, mas a sua identidade é claramente diferente, revela-se aqui uma peculiaridade da identidade individual em relação aos seres conscientes, que é a opinião pessoal como caracterizadora da consciência e consequentemente do individuo e que pode modificar aquilo que normalmente é visto apenas do ponto de vista externo (como o barco de Teseu)8, ou seja aquilo que apenas o individuo pode realmente conhecer também é parte da sua identidade. Outro caso será o de dois indivíduos em que ambos pensam A mas executam não A, ainda mais facilmente se poderiam caracterizar como sendo idênticos, no entanto digamos que um deles vive atormentado por executar o contrario da sua opinião, aqui ultrapassamos a escolha e alcançamos a dimensão sensitiva do sujeito, o qual também será um dos factores primordiais da sua identidade9. Mas continuamos sem ver uma força externa que obrigue a mudança, pois nada disto obrigo o individuo ao quer que fosse, só o desejo de permanência no grupo é que condicionou o individuo.



    Desta forma, aparentemente, toda a mudança do individuo é sempre iniciada pelo próprio e com curso definido, mas isso significará que o exterior não tem influencia nessa mudança, especialmente algo como um grupo? Influencia sim, regressemos as primeira linhas do texto, onde vimos que o individuo é de facto livre, mas as opções que pode escolher nem sempre são criadas por ele, e se as escolhas e as consequências destas são integrantes da identidade do individuo então também é o grupo envolvente, afinal o individuo surge como um mundo de possibilidades mas a actualização das possibilidades é feita com participação directa do mundo exterior. Apesar da responsabilidade ser individual a criação e mutação do individuo não é, por isso se houver conflito será na própria actualização das possibilidades individuais.
Estamos talvez no fim da nossa jornada, pois referimos que o individuo acaba por mudar e evoluir para algo de novo, independentemente até de não o querer (e nisto não é livre), o único conflito que existe é se o individuo muda para algo que deseja ser ou ser ou para algo que não deseja ser (ou para algo mais próximo de uma destas possibilidades). O problema é, por vezes, apenas surgirem opções que deixam sempre o individuo mais longe daquilo que deseja ser, nesse momento é que existe o real conflito e o grupo/mundo exterior começa a enformar a identidade individual através da identidade/realidade colectiva. Mas como já foi dito, existem escolhas injustas e imorais algumas que põe mesmo em causam direitos básicos e tais escolhas são inconcebíveis e absolutamente imorais (tal como a primeira de todas referida no texto) e ninguém é obrigado a ter que as superar (apesar de ser bastante louvável quem o consegue fazer), nesta altura a preservação da identidade só pode ser feita por duas formas ou a ruptura com o grupo/mundo, ou a capacidade de mudar a identidade do grupo/mundo. As situações que obrigam o individuo a este tipo de opções, aquelas a que não devia ser obrigado a confrontar tornam-se talvez nas únicas que realmente o mudam sem este alguma vez poder ter uma verdadeira responsabilidade pela mudança, mesmo que a opção continue a ser sua.


    Consegue um grupo mudar um individuo? Sim, basta condicionar-lhe as opções que tem disponíveis, ou então condicionar-lhe a percepção destas (as praxes ou a politica, são óptimos exemplos deste ultimo caso), enquanto o individuo de facto escolhe e arca com as consequências, é uma de certa forma uma falsa escolha, pois na verdade o leque de escolhas já foi feito por outros.10
A identidade do individuo depende então apenas da capacidade deste se distanciar ou mudar o grupo a partir do momento que não se considera compatível com este, e havendo a possibilidade de o fazer, sem que haja consequência derivadas de uma opção que é imoral de oferecer, toda a opção do grupo pode ser considerada como tendo pelo menos o consentimento do individuo. O grupo pode então ser utilizado para criar uma caracterização superficial do individuo, mas sem o essencial, pois o individuo ultrapassa as acções, escolhas e opiniões do grupo e até do próprio individuo, pois em ultima analise o individuo continua a ser responsável por deixar que a caracterização genérica e superficial do grupo se aplique a ele próprio.


    Em suma, um grupo pode realmente mudar um individuo, mas so quando a mudança se torna um ataque, não à sua identidade, mas à sua pessoalidade. De resto a sua identidade está tão protegida quanto a força da percepção do seu valor pessoal, que todos têm e o qual deve de ser estimulado em liberdade e igualdade de direitos.



1 Definamos identidade individual como aquilo que caracteriza um individuo, nos seus aspectos mais pessoais, por oposição aos aspectos mais metafisicos.
2 Não é necessário que seja grupos voluntários, pois o mesmo se poderia aplicar, com as devidas anotações, a grupos involuntários, mas concentrem-nos por hora nestes casos, pois são os que me interessa neste texto.
3Podem ser recreativas, religiosas, politicas, desportivas, qualquer género...
4 Não é de todo excluir a possibilidade que a identidade do grupo seja indiferenciavel da do individuo, especialmente se for um grupo com identidade minimalista, ou se por exemplo o individuo for o “ditador” absoluto do grupo.
5Esta caracterização é bastante genérica de propósito, pois tanto pode descrever um regime fascista, como pode descrever uma cadeia de comando das equipas de emergência (nomeadamente bombeiros ou protecção civil). Desta forma temos indivíduos atómicos bastante diferentes em cada e para cada uma duas entidades de grupo mas que foram descritas de forma (genericamente) idêntica.
6Neste ponto não implico necessariamente alguma forma de corrupção, mas sim que os representantes, fazendo o devido papel de representação, representem o grupo nas características que entram em conflito com o individuo.
7Pelo menos a mudança que possa vir a existir não provem exclusivamente da influencia do grupo, podendo perfeitamente ocorrer mudanças na identidade pessoal devido a outras razões (metafisicamente, falando o tempo apenas pode ser uma mudança do ser, que leve o ser a ser outra coisa, e não o que era)
8O navio de Teseu é uma historia dos filósofos gregos, em que o dito barco ao longo dos anos foi reparado muitas vezes, tantas que a partir de certo ponto já nenhuma das suas partes era original do barco, onde a questão se ponha como pode o barco ser o mesmo, mesmidade do todo e diferença das partes?
9Aliás, quase toda a arte que contem uma narrativa o demonstra.
10E aqui temos uma das maiores razões pela qual é necessário que haja formas de democracia directa numa sociedade justa e livre.