A identidade pessoal,
isto é, quando é que algo é ainda o mesmo algo ou algo diferente
ou a questão da persistência da mesmidade, é um dos mais antigos e
complexos problemas da filosofia, pelo que seria presuntuoso
apresentar aqui uma solução para a poder equacionar com a
identidade de um grupo. Pelo que faço uma variante do assunto e
falarei antes de identidade individual 1,
a qual podemos ainda não saber caracterizar mas sabemos bem a partir
de que limites a identidade individual é claramente comprometida e o
objectivo deste texto é exactamente esse, o de conhecer quando é
que os limites da identidade de um individuo é comprometido pela de
um grupo ao qual voluntariamente pertença2.
Existimos primeira e
necessariamente como seres independentes, como Sartre constatou,
condenados à nossa própria liberdade, uma consequência da nossa
mente individual que cuja percepção da própria existência obriga
a uma opinião do que percepciona, liberdade esta que por vezes nos
impõe escolhas injustas, como escolher entre o nosso mal ou à
expressão livre e exterior da nossa liberdade. Mas, existindo, a
nossa mente opina e avalia na melhor das suas capacidades tudo o que
com ela entra em contacto e por fim escolhe, mesmo que essa escolha
seja dar a acção a outrem, a nossa representatividade a alguém que
não somos nós, ou pura e simplesmente nunca se exprimir e escolher
que outros influenciem o mundo, incluído o mundo pessoal do próprio
individuo, de uma forma desafecta à opinião deste. A identidade
individual é então algo que o próprio individuo (e apenas este ?)
conhece, e esta é começa a ser ultrapassada quando o individuo a
sente forçada a fazer acções não porque as escolheu mas sim
porque a escolha foi feita independentemente da sua opinião, pois
nesse momento o individuo consegue ver duas coisas, as acções
implicadas pela sua identidade e a acções que lhe estão a ser
forçadas e que não são compatíveis com a sua identidade.
Mas a maioria dos
indivíduos nasce já numa sociedade, ou seja numa espécie de união
ou grupo do qual se pode questionar se podem ou não ter completa
liberdade e identidade individual, mas admitamos que sim
(posteriormente espero vir a argumentar, implicitamente, tal coisa,
mas de qualquer forma é irrelevante para o problema aqui levantado).
No entanto dentro dessa sociedade muitas vezes cada um dos indivíduos
escolhe livremente juntar-se ou fazer parte de um outro grupo ou a
uma outra forma de união3
que obrigatoriamente até certo ponto ultrapassa ou suplanta o
individuo possuindo uma identidade própria que dificilmente será
completamente indiferenciavel da do individuo4.
A questão passa por saber quando é que está identidade do grupo é
um ataque à identidade individual e pessoal.
Pensemos na identidade
de grupo, esta é feita pois várias pessoas livres, se unem para
realizar acções concretas, sob a forma de uma entidade que pode ser
caracterizada de forma independente, mas sem necessariamente se
confundir com a dos seus indivíduos atómicos (ou seja as pessoas).
A identidade deste grupo surge da mistura da identidade dos seus
integrantes, mesmo no caso de um grupo completamente autoritário e
hierarquicamente rígido a sua caracterização só pode-se realizar
através dos que representam a autoridade e dos que escolhem serem
comandados por essa mesma autoridade, um grupo destes surge quando
existe um numero suficientemente grande de pessoas dispostas a serem
comandadas e de outras a comandarem5.
Mas o mesmo é valido para grupos de, digamos, discussão de opiniões
livres, onde para funcionar como grupo os indivíduos tem de aceitar
regras ou procedimentos que podem não ser de pleno acordo com a
própria opinião (por exemplo os temas sobre os quais falar, durante
quanto tempo, forma de reunião etc...), mas claramente alguns tipos
de grupo forçaram mais do que outros a uma maior pressão sobre a
identidade do individuo em relação à identidade do grupo. Se esta
nova entidade se gera a partir da mistura de individualidades, a
proporção da escolha de liberdade expressa ou externa de cada um
dos indivíduos será aquilo que enforma a identidade desta nova
entidade que é o grupo, assim o individuo tem através da sua
escolha um efeito modelador proporcional à força da exteriorização
da própria identidade. A capacidade de exteriorizar a escolha e
opinião pessoal que é um reflexo da identidade pessoal, não será
o único factor pois os mesmo é valido para cada um dos indivíduos,
levando a um confronto ou uma confluência de características
individuais, é será deste encontro que emergirá uma nova entidade
com a identidade própria do grupo. Teoricamente nada impede que
vários indivíduos diferentes consigam criar um grupo em que apenas
há confluência na identidade dos indivíduos (para os propósitos
do grupo, entenda-se, pois de outra forma podíamos começar a por em
causa se seriam de facto indivíduos diferentes) mas o caso que nos
interessa é aquele em que existe também conflito de opiniões
individuais, expressas ou não.
O individuo ao entrar
num grupo sabe da provável impossibilidade de total compatibilidade
para com a maioria pelo que já está a pressupor que nem sempre
poderá agir da forma que escolheria em todos os casos, ou que os
seus “representantes“ nem sempre o representarão mas sim coisas
com as quais não está de acordo6.
Chegamos ao crucial, qual é a relação da identidade individual e
da lealdade para consigo próprio quando isso acontece?
O individuo unindo-se ou
criando voluntariamente um grupo terá uma noção dos parâmetros
desse mesmo grupo, pelo que tendo consciência de que parte da sua
liberdade é posta em causa para a formação da identidade do grupo,
terá já uma noção do que está abdicar e mesmo assim faz a
escolha plena, resolvendo pessoalmente quais são os limites a partir
dos quais não abdica ou abdica de algumas opções pois estão ainda
são compatíveis com a sua identidade. Desta forma as escolhas do
grupo podem passar por escolhas também pessoais e compatíveis com a
sua identidade, pois foram tomadas antes de o grupo poder exercer
influencia sobre o individuo, provavelmente sendo opções que
possivelmente também tomaria sozinho dadas as circunstancias certas,
assim é necessário ir ao nível seguinte e ver quando a opção do
grupo é uma incógnita ao individuo.
A opção de um grupo é
muitas vezes uma incógnita, mesmo aos seus integrantes, pelas mais
variadas razões, desde a impossibilidade de prever e calcular todas
as variáveis, ou à de mutação do próprio grupo, quer através da
mudança individual de cada um dos integrantes ou de mudanças
daqueles que são os integrantes do grupo. E é esta incógnita que
tem a capacidade de afectar o individuo, pois ao ser confrontado com
a novidade o individuo terá de avaliar essa mesma novidade e neste
momento rever a sua própria identidade. Neste momento duas coisas
podem acontecer, estar de acordo com a resolução (ou dentro dos
limites que tinha definido previamente) ou não estar de acordo. O
conflito gera-se neste ultimo ponto, potencialmente comum, em que o
grupo implica algo que já não é o acto do individuo, que pode
escolher três coisas: agir de forma contraria ao grupo mas própria
a si próprio, aceitar sem concordar mantendo a mesma opinião que
tinha mas agindo contra a própria a opinião, ou por ultimo
(tentar?) mudar-se a si próprio. No primeiro caso creio existir pelo
menos uma certa preservação da identidade pessoal7,
no terceiro claramente existe a auto-violação desta, e no segundo?
É evidente que existirá
um conflito pessoal pois tem uma opinião e uma acção diferente,
aqui encontramos outra pergunta, o que caracteriza uma pessoa? As
suas opiniões ou as suas acções? Podemos supor um sujeito na
situação em que pensa A mas executa não A (o seu oposto), e outro
que pensa e executa não A, nesta caracterização redutora os dois
são do ponto de vista de um observador externo idênticos, mas a sua
identidade é claramente diferente, revela-se aqui uma peculiaridade
da identidade individual em relação aos seres conscientes, que é a
opinião pessoal como caracterizadora da consciência e
consequentemente do individuo e que pode modificar aquilo que
normalmente é visto apenas do ponto de vista externo (como o barco
de Teseu)8,
ou seja aquilo que apenas o individuo pode realmente conhecer também
é parte da sua identidade. Outro caso será o de dois indivíduos em
que ambos pensam A mas executam não A, ainda mais facilmente se
poderiam caracterizar como sendo idênticos, no entanto digamos que
um deles vive atormentado por executar o contrario da sua opinião,
aqui ultrapassamos a escolha e alcançamos a dimensão sensitiva do
sujeito, o qual também será um dos factores primordiais da sua
identidade9.
Mas continuamos sem ver uma força externa que obrigue a mudança,
pois nada disto obrigo o individuo ao quer que fosse, só o desejo de
permanência no grupo é que condicionou o individuo.
Desta forma,
aparentemente, toda a mudança do individuo é sempre iniciada pelo
próprio e com curso definido, mas isso significará que o exterior
não tem influencia nessa mudança, especialmente algo como um grupo?
Influencia sim, regressemos as primeira linhas do texto, onde vimos
que o individuo é de facto livre, mas as opções que pode escolher
nem sempre são criadas por ele, e se as escolhas e as consequências
destas são integrantes da identidade do individuo então também é
o grupo envolvente, afinal o individuo surge como um mundo de
possibilidades mas a actualização das possibilidades é feita com
participação directa do mundo exterior. Apesar da responsabilidade
ser individual a criação e mutação do individuo não é, por isso
se houver conflito será na própria actualização das
possibilidades individuais.
Estamos talvez no fim da
nossa jornada, pois referimos que o individuo acaba por mudar e
evoluir para algo de novo, independentemente até de não o querer (e
nisto não é livre), o único conflito que existe é se o individuo
muda para algo que deseja ser ou ser ou para algo que não deseja ser
(ou para algo mais próximo de uma destas possibilidades). O problema
é, por vezes, apenas surgirem opções que deixam sempre o individuo
mais longe daquilo que deseja ser, nesse momento é que existe o real
conflito e o grupo/mundo exterior começa a enformar a identidade
individual através da identidade/realidade colectiva. Mas como já
foi dito, existem escolhas injustas e imorais algumas que põe mesmo
em causam direitos básicos e tais escolhas são inconcebíveis e
absolutamente imorais (tal como a primeira de todas referida no
texto) e ninguém é obrigado a ter que as superar (apesar de ser
bastante louvável quem o consegue fazer), nesta altura a preservação
da identidade só pode ser feita por duas formas ou a ruptura com o
grupo/mundo, ou a capacidade de mudar a identidade do grupo/mundo. As
situações que obrigam o individuo a este tipo de opções, aquelas
a que não devia ser obrigado a confrontar tornam-se talvez nas
únicas que realmente o mudam sem este alguma vez poder ter uma
verdadeira responsabilidade pela mudança, mesmo que a opção
continue a ser sua.
Consegue um grupo mudar
um individuo? Sim, basta condicionar-lhe as opções que tem
disponíveis, ou então condicionar-lhe a percepção destas (as
praxes ou a politica, são óptimos exemplos deste ultimo caso),
enquanto o individuo de facto escolhe e arca com as consequências, é
uma de certa forma uma falsa escolha, pois na verdade o leque de
escolhas já foi feito por outros.10
A identidade do
individuo depende então apenas da capacidade deste se distanciar ou
mudar o grupo a partir do momento que não se considera compatível
com este, e havendo a possibilidade de o fazer, sem que haja
consequência derivadas de uma opção que é imoral de oferecer,
toda a opção do grupo pode ser considerada como tendo pelo menos o
consentimento do individuo. O grupo pode então ser utilizado para
criar uma caracterização superficial do individuo, mas sem o
essencial, pois o individuo ultrapassa as acções, escolhas e
opiniões do grupo e até do próprio individuo, pois em ultima
analise o individuo continua a ser responsável por deixar que a
caracterização genérica e superficial do grupo se aplique a ele
próprio.
Em suma, um grupo pode
realmente mudar um individuo, mas so quando a mudança se torna um
ataque, não à sua identidade, mas à sua pessoalidade. De resto a
sua identidade está tão protegida quanto a força da percepção do
seu valor pessoal, que todos têm e o qual deve de ser estimulado em
liberdade e igualdade de direitos.
1 Definamos
identidade individual como aquilo que caracteriza um individuo, nos
seus aspectos mais pessoais, por oposição aos aspectos mais
metafisicos.
2
Não é necessário
que seja grupos voluntários,
pois o mesmo se poderia aplicar, com as devidas anotações, a
grupos involuntários, mas
concentrem-nos por hora
nestes casos,
pois são os que me interessa neste texto.
3Podem
ser recreativas, religiosas, politicas, desportivas, qualquer
género...
4
Não é de todo excluir a possibilidade que a identidade do
grupo seja indiferenciavel da do individuo, especialmente se for um
grupo com identidade minimalista, ou se por exemplo o individuo for
o “ditador” absoluto do grupo.
5Esta
caracterização é bastante genérica de propósito, pois tanto
pode descrever um regime fascista, como pode descrever uma cadeia de
comando das equipas de emergência (nomeadamente bombeiros ou
protecção civil). Desta forma temos indivíduos atómicos bastante
diferentes em cada e para cada uma duas entidades de grupo mas que
foram descritas de forma (genericamente) idêntica.
6Neste
ponto não implico necessariamente alguma forma de corrupção, mas
sim que os representantes, fazendo o devido papel de representação,
representem o grupo nas características que entram em conflito com
o individuo.
7Pelo
menos a mudança que possa vir a existir não provem exclusivamente
da influencia do grupo, podendo perfeitamente ocorrer mudanças na
identidade pessoal devido a outras razões (metafisicamente, falando
o tempo apenas pode ser uma mudança do ser, que leve o ser a ser
outra coisa, e não o que era)
8O
navio de Teseu é uma historia dos filósofos gregos, em que o dito
barco ao longo dos anos foi reparado muitas vezes, tantas que a
partir de certo ponto já nenhuma das suas partes era original do
barco, onde a questão se ponha como pode o barco ser o mesmo,
mesmidade do todo e diferença das partes?
9Aliás,
quase toda a arte que contem uma narrativa o demonstra.
10E
aqui temos uma das maiores razões pela qual é necessário que haja
formas de democracia directa numa sociedade justa e livre.