segunda-feira, 20 de outubro de 2014


As Duas Leis



Platão atribuía uma beleza especial à criação da cidade-estado a partir da sua legislatura e numa demanda por saber o que será uma legislatura que devemos construir, podemos começar por observar as melhores das existentes e facilmente apercebemos-nos que existem dois grandes pólos de leis consoante a sua natureza, aquelas que são de desenho social e as que são de justiça.


O desenho social é aquele que permite a diferença entre dois povos, criando as regras do dia-a-dia e o modo de se fazer as coisas. Exemplifique-se com o código da estrada e o “andar pela direita”, esta lei é uma escolha. De facto o seu contrario o “andar pela esquerda” praticado em Inglaterra é tão justo, ético e moral quanto o nosso, apesar de ser o oposto da acção praticada por nós. É uma escolha pois apesar de seu carácter aparentemente aleatório é uma demonstração de uma escolha ou gosto particular que as pessoas executaram consciente ou inconscientemente, e com uma origem e um impacto cultural e estético da criação de uma cultura. A forma da escolha e a própria escolha são desta forma o reflexo da sociedade que a toma, não necessariamente dos seus constituintes, uma vez que esta sociedade pode ser uma ditadura, re-demonstrando que estas leis em si são inoculas, necessitando a legislatura de ser suportada por outro tipo de lei para existir a justiça ou o bem.
É no entanto com este tipo de leis que se desenha uma sociedade e se harmoniza um povo com uma cultura e uma forma de ser que é só deles, pois este tipo de leis é o que faz o modo de vida e as acções necessárias para a vida nesta sociedade. Mas a escolha como é só para esta sociedade ganha um certo carácter único e como provem de pessoas (não necessariamente de todas) ganha um carácter estético pois também provem daquilo que as pessoas escolhem para a sua ideia de sociedade e de vida social bela e boa.
Pode-se talvez argumentar que este pólo só realmente existe quando é democrático e plural para todos os seus constituintes, pois o não ser democrático elimina a existência do outro pólo, tornando o desenho ditatorial da sociedade no epicentro único da legislatura, não sendo já um desenho, mas uma escultura, aliás uma ferramenta de ferro, até pode ser uma legislatura mas não uma que liga, só uma que prende.1


O outro pólo é o da justiça pura, ou seja daquilo que de deve ser e se deve fazer e proteger independentemente de tudo o resto, auto-justificado, em que o próprio fim é a própria razão de ser. Como exemplos mais conhecidos temos o direito à vida e à liberdade nas suas imensas formas, esta tem como base a sua universalidade e igualdade, a sua negação será universalmente injusta e má, não importando o tempo, local ou contexto, não podem sequer ser democratizadas ou referendadas, pois o resultado de tal não seria uma averiguação da justiça destes conceitos (talvez de outras coisas da sociedade, medo, raiva ou educação mas não da justiça). Na verdade são leis que não seriam necessárias se o individuo escolher e for capaz de uma vida justa, a única real necessidade é da beleza-estética-platónica de se conseguir construir uma legislatura que realmente reflicta a justiça e o bem. Pois ao contrario da direcção em que se conduz, em que é necessário aprender e educar os múltiplos indivíduos sobre a norma escolhida, o individuo não precisa necessariamente de informação (talvez de reflexão ) para perceber a liberdade ou a vida como direitos universais e a transcendência deles à vontade humana.
Aqui a tentativa de legislar é provavelmente em vão, talvez até uma contradição, pois captar algo que ultrapassa o humano com meios puramente humanos é de certa forma uma escolha, muito provavelmente sempre deficitária. Talvez ainda contra-producente, retirando a justiça do individuo para o seu exterior na vã tentativa de que a justiça possa ser apreendida e não alcançada, mas se calhar não deixa de ser uma obra demasiado importante para não ser tentada... e mesmo assim talvez necessária uma vez que as pessoas parecem continuar a falhar na obtenção da justiça e do bem.
No entanto, neste pólo vislumbra-se a possibilidade de não existir no seu aspecto formal, pois o seu aspecto formal não retira a existência prévia de uma certa forma de lei transcendental, mas uma lei. No entanto por oposição o outro pólo só pode existir partido das pessoas e formalizando.


A legislatura desejada observa então esta convergência de dois pólos, o democrático e o universal, mas talvez ainda mais interessante é que apesar de afastados, ainda que convergentes, são interdependentes, pois um depende de coisas como o direito à vida, à liberdade e igualdade e o outro dá os meios para uma pessoa poder conhecer, ser e proteger coisas como a justiça e a liberdade na sociedade. O pólo democrático depende daqueles direitos básicos que o pólo universal garante, nomeadamente um deles é a liberdade de poder escolher o lado da estrada em que quer conduzir. No entanto o pólo democrático dá os meios de a sociedade se poder organizar para ser justa e boa e assim ajudar a proteger o direito à vida ou a igualdade, criando de certa forma a execução da justiça e dos restantes direitos. Afinal com a escolha tomada e a sociedade desenhada, conduzir do lado errado torna-se uma matéria de justiça e não de escolha (pelo menos até que se use os meios devidos e justos para se re-desenhar a sociedade), pois neste caso o seu contrario torna-se um atentado ao direito à vida.

Convergem mutua e reciprocamente numa dinâmica conceptual da qual certamente requer a sabedoria e a beleza que Platão procurava.


1http://pt.wikipedia.org/wiki/Lei

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